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  • Foto do escritorDra. Vanessa Santarosa

Transplante de ilhotas pancreáticas. Estamos perto da cura do diabetes?

O pâncreas é o principal órgão regulador da glicemia plasmática. A ilhota pancreática é um conjunto de células que produzem os hormônios responsáveis pelo controle glicêmico e representa no máximo 2% do volume do pâncreas, o restante desse órgão é composto por células denominadas acinares produtoras de enzimas digestivas e que não são afetadas pelo diabetes. As ilhotas pancreáticas são compostas por 2 células principais: célula beta produtora do hormônio insulina e célula alfa produtora do hormônio glucagon. Ambos os hormônios são importantes para regulação do açúcar no sangue e com a evolução do diabetes há um comprometimento importante dessas células em produzir e secretar seus respectivos hormônios.

O transplante consiste na separação e purificação das ilhotas e posterior infusão dessas células através da punção e cateterização da veia porta do fígado pelo abdômen. O procedimento se parece como uma transfusão sanguínea e não uma cirurgia. Apesar de parecer um procedimento relativamente simples, as etapas pré e pós transplante são altamente complexas. Os pâncreas utilizados para o transplante são provenientes de doadores de órgãos em morte cerebral, quando o órgão não é utilizado para transplante do pâncreas inteiro, ou seja, a escassez de doadores é um dos empecilhos encontrados no Brasil. Como temos mais de 2 milhões de ilhotas no pâncreas e o transplante bem sucedido consegue recuperar no máximo metade dessas ilhotas, é necessário mais de um doador para que o paciente se torne insulino independente. Além disso, a tecnologia envolvida na purificação das ilhotas, bem como sua conservação até o momento do transplante, a capacitação profissional envolvida, os custos e a terapia de imunossupressão pós o transplante dificultam a ampla disponibilidade do tratamento.

Há quase 20 anos, desde o primeiro transplante realizado pelo “protocolo de Edmonton”, desenvolvido pela Universidade de Alberta, Canadá, este protocolo e suas variantes foram realizados em mais de 750 pacientes de 53 diferentes centros, incluindo o Núcleo de Terapia Celular e Molecular da Universidade de São Paulo (Nucel). A taxa de sucesso, definida como insulino-independência em um ano, variava de acordo com a expertise de cada centro e pode chegar até a 82%. No entanto, observava-se ao longo dos anos uma perda progressiva da autonomia do transplantado em produzir adequadamente sua própria insulina, sendo que em 3 anos 50% dos pacientes perdiam a capacidade de produzi-la e, em 5 anos, apenas 10% dos transplantados não necessitavam de insulina para controlar a glicemia. O dado positivo é que a grande maioria desses pacientes (mais de 80%) possuem peptideo C ainda detectável, ou seja, existe reserva e secreção de insulina, o que traz o grande benefício de tornar a doença com menor instabilidade glicêmica, reduzindo muito os episódios de hipoglicemias graves e picos hiperglicêmicos, garantindo um controle adequado do diabetes. Nos últimos anos, através do aprimoramento das técnicas de imunossupressão, esses números melhoram bastante e cerca de 50% dos pacientes hoje mantém a insulino-independência por mais de 5 anos.

Em um estudo recente publicado em março de 2018 no Journal Cell Metabolism foi verificado que o set point glicêmico do doador era transferido aos receptores do transplante de ilhotas pancreáticas, demonstrando que as células pancreáticas são realmente o “gucostato” do organismo. Além disso, o estudo também sugere que o sucesso do transplante depende não somente das células beta produtoras de insulina mas também das células alfas produtoras de glucagon. Os pesquisadores transplantaram ilhotas humanas, de linhages específicas de macacos e ratos em ratos imunocomprometidos que apresentavam diabetes. Esses doadores foram escolhidos por justamente apresentarem valores normais de glicemias bem distintos. Após o transplante, os ratos diabéticos normalizaram a glicemia para valores indistinguíveis dos valores glicêmicos de seus doadores (humanos 80mg/dl, ratos 153mg/dl e macacos 52mg/dl). Para demonstrar a importância das células alfa no controle glicêmico, os pesquisadores utilizaram o teste de tolerância oral a glicose para comprovar o desenvolvimento do diabetes em ratos que receberam transplantes de ilhota cujo receptor de glucagon foi bloqueado. Além disso, o grupo demonstrou que na vigência de antagonistas do receptor de glucagon a secreçãoo de insulina pela célula beta decaia em aproximadamente 25%, ou seja, a adequada produção e secreção de insulina depende também da célula alfa.

Atualmente esse procedimento é indicado apenas para uma pequena parcela dos pacientes devidos as dificuldades e riscos envolvidos, os melhores candidatos são pacientes com diabetes do tipo 1 e de difícil controle com grande variabilidade glicêmica, ou seja, quando há insuficiência pancreática e doença marcada por muitos episódios de hipoglicemias associadas a picos hiperglicêmicos em que não há controle adequado com o tratamento convencional insulinêmico, o chamado “brittle diabetes”.

Apesar de parecer relativamente pouco invasivo, o procedimento do transplante de ilhotas apresenta alguns efeitos adversos importantes sendo o principal deles os relacionados à imunossupressão. Os mais frequentes relatados são: alterações transitórias das enzimas hepáticas em quase 10% dos pacientes e sangramento intra-abdominal em 3% dos casos. Na terapia imunossupressora, usada para o resto da vida, as principais medicações são o sirolimo e tacrolimo, sendo na maioria dos casos dispensável o uso de corticoide. A terapia imunossupressora frequentemente causa neuropatia e linfopenia/leucopenia com diminuição da imunidade e consequente aumento de infecções oportunistas. Além disso, alterações como anemia, vômitos, diarréia e alteração da função renal também podem ocorrer. A despeito dos efeitos adversos da terapia imunossupressora um estudo recente mostrou melhora considerável da qualidade de vida de pacientes diabéticos tipo 1 transplantados quando comparado com a fase do diabetes de difícil controle.

Países como Canadá e Suécia, realizam esse procedimento de rotina, sendo financiado pelos respectivos sistemas de saúde. No Brasil, alguns transplantes foram realizados em São Paulo, mas infelizmente nenhum hospital realiza o procedimento de rotina. O Hospital das Clínicas de Porto Alegre tem um laboratório equipado e uma equipe treinada para realizar o isolamento de Ilhotas, porém o tratamento necessita de financiamento junto ao Ministério da Saúde para se tornar realidade.

Enquanto isso o otimismo diante do transplante de ilhotas permanece, uma vez que as pesquisas avançam na direção de um tratamento capaz de livrar o paciente da dependência do uso de insulina.

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